Lendas de Guaratuba: Identificadoras de paisagens culturais, de Taiza Mara Rauen Moraes y Paulo Santos da Silva,
Revista TEFROS, Vol. 17, N° 2, artículos originales, julio-diciembre 2019: 150-163. En línea: julio de 2019. ISSN 1669-726X
Cita recomendada:
Rauen Moraes, T. M. y P. Santos da Silva, Lendas de Guaratuba: Identificadoras de paisagens culturais,
Revista TEFROS, Vol. 17, N° 2, artículos originales, julio-diciembre 2019: 150-163
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Lendas de Guaratuba: Identificadoras de paisagens culturais
Leyendas de Guaratuba: Identificadoras de paisajes culturales
Guaratuba’s legends: Identifiers of cultural landscapes
Taiza Mara Rauen Moraes
Universidade da Região de Joinville,Brasil1
Paulo Santos da Silva (in memoriam)
Universidade da Região de Joinvi,Brasil2
Fecha de recepción: 10 de agosto de 2018
Fecha de aceptación: 20 de junio de 2019
RESUMO
O artigo analisa lendas compreendidas como universos de memórias recriadas a cada (re)conto, que nascem de fatos reais, informados ou sintetizados, e se transformam em novas narrativas como registros difundidos oralmente e recuperados, mantendo vivas tradições coletivas e paisagens culturais em um metamorfismo contínuo, fixando cultivos de linguagens no fluxo. As lendas recolhidas em Guaratuba (PR) foram contadas por vozes de mulheres a partir de pesquisa desenvolvida nos anos de 2014 e 2015, por Paulo Santos da Silva. Para tal, investigamos como as novas formas de narrar as lendas transmitem memórias de grupos, de uma época e de culturas, revivendo pela oralidade no tempo presente histórias que recuperam tradições.
Palavras-chave: memórias lendárias; história oral; paisagens culturais.
RESUMEN
El artículo analiza leyendas comprendidas como universos de memorias recreadas a cada (re) cuento, que nacen de hechos reales más información o sintetizados y se transforman en nuevas narrativas como registros difundidos oralmente y recuperados manteniendo vivas tradiciones colectivas y paisajes culturales en un metamorfismo continuo fijando cultivos de lenguajes en flujo. Las leyendas recogidas en Guaratuba / PR, fueron contadas por voces de mujeres, a partir de investigación desarrollada en los años de 2014 y 2015, por Paulo Santos da Silva. Por lo tanto, investigamos cómo las nuevas formas de narrar las leyendas transmiten memorias de grupos, de una época y de culturas, reviviendo por la oralidad en el tiempo presente historias que recuperan tradiciones.
Palabras clave: memorias legendarias; historia oral; paisajes culturales.
ABSTRACT
The article analyzes legends understood as universes of memories that are re-created in each (re)tale born out of real facts, and, either extended or synthesized, are transformed into new narratives. These have become orally disseminated, recovering records which keep alive collective traditions and cultural landscapes in a continuous metamorphism, and set cultures of languages in flux. Based on research developed by Paulo Santos da Silva during the years 2014 and 2015, the legends collected in Guaratubja / PR were told by women’s voices. In this study we investigate how the new ways of narrating the legends transmit the memories of groups, times, and cultures, which are nowadays orally revived those histories that recover traditions.
Keywords: legendary memories; oral history; cultural landscapes.
INTRODUÇÃO
A proposta do artigo é abordar as lendas como universos de memórias recriadas a cada (re) conto, sintetizadas ou acrescidas de informações, transformadas em novas narrativas como registros difundidos oralmente para manter vivas as tradições coletivas e as paisagens culturais, bem como compreendê-las como narrativas que perpassam o real e adentram no reino do fantástico, do maravilhoso, ecoando a percepção de Benjamin (1994, p. 200), de que essas narrativas desvelam o “lado épico da verdade”. As lendas atravessaram gerações diferentes e circulam em lugares distintos, assim são ressignificadas e despertam encantamentos, perplexidades, incredulidades, desprezos, dúvidas restaurando no tempo presente pontos de vista históricos, ideológicos e sociais como memória. Portanto, são compreendidas nesta pesquisa como narrativas que recriam universos de memórias e (re) inauguram no imaginário dos contadores e dos interlocutores formas distintas a cada (re) conto. Nelas, estão contidos o épico imaginário, advindo de fatos reais e a eles, vão sendo acrescidos elementos da arte de narrar reconfigurando o evento.
As lendas coletadas em Guaratuba/PR, contadas por vozes de mulheres, a partir de pesquisa desenvolvida nos anos de 2014 e 2015, por Paulo Santos da Silva, reafirmam Ricoeur (1995, p. 46) que sinaliza o lendário como (re) inaugurador de “novas formas de narrativas, que ainda não sabemos dominar”, num metamorfismo contínuo fixando culturas de linguagens em fluxo. Assim, as lendas transmitem memórias de grupos, de uma época e de uma cultura, revivendo pela oralidade no tempo presente histórias que recuperam tradições. Ou seja, as lendas são compreendidas como uma coletânea dos rastros deixados pelos acontecimentos que afetaram o curso da história dos grupos envolvidos, cuja memória permite deslindar novos sentidos por estabelecerem um fluxo do passado para o futuro e do futuro para o passado através do presente.
METODOLOGÍA
A metodologia da história oral foi adotada para o registro das lendas de Guaratuba/PR, conforme a acepção de Joutard (2000, p. 31) que viabiliza ao pesquisador ouvir as vozes dos excluídos; emergir realidades indescritíveis e testemunhar situações de extremo abandono. Os olhares foram dirigidos para o que não está registrado em documentos escritos, visando adentrar nos mundos do imaginário e do simbólico, mundos esses desvelados nos encontros do Círculo de Leitura, marcados a partir de um consenso entre os integrantes, para contar e ouvir lendas fixadas na memória e abrir caminhos de percepções dos jogos de poder e das representações contidas nas narrativas lendárias.
No ato de narrar lendas, perpassam jogos ideológicos que apontam para o entendimento de valores repassados para o tempo presente devido ao modo como as narrativas foram reelaboradas pela memória do grupo que se considera autor de sua própria história e faz da realidade vivida suas representações. Nesse sentido, os registros das lendas guaratubanas rememoradas oralmente resultaram na criação de um blog pelo pesquisador Paulo Santos da Silva, denominado “Guaratuba em histórias”, disponível em:
http://guaratubaemhistorias.zip.net, alimentado de modo colaborativo por alunos do curso de Pedagogia, da Faculdade do Litoral Paranaense – ISEPE Guaratuba e por integrantes de um Círculo de Leitura, constituído por cinco mulheres residentes no município, cujos encontros foram filmados em um documentário disponível no Arquivo de História Oral da Univille, Universidade da Região de Joinville.
LENDAS DE GUARATUBA/PR COMO REGISTROS CULTURAIS
As narrativas orais viabilizam encontros entre os mitos e as lendas. Conforme Carneiro Jr. (2005, p. 12), pelos mitos e pelas lendas pode-se penetrar nos meandros psicológicos dos homens, pois captam e transmitem os seus desejos, suas leituras de mundo e de si mesmos. As lendas por serem discursos de vozes populares, provenientes de pessoas simples e de situações comuns cujos discursos expõem as mazelas humanas, bem como a ambição (tesouros enterrados), vaidade, decepções amorosas, religiosidade, morte, assombramentos, reafirmam o conceito de mito que, segundo Barthes (1989, p. 131), é uma fala, um modo de significação e até mesmo uma forma com limites históricos associados ao vivido, assim essas narrativas resultam de entrecruzamentos que muitas vezes se homogeneízam em um texto híbrido.
Os mitos e as lendas circulavam nas sociedades antigas e serviam como representações de heróis épicos em luta contra a natureza, contra o destino e os deuses, permitindo uma ligação entre o passado, o presente e o futuro. A mitologia, nas sociedades sem escrita e sem arquivos, tinha por finalidade “assegurar, com um alto grau de certeza – a certeza completa é obviamente impossível –, que o futuro permanecerá fiel ao presente e ao passado” (Levi-Strauss, 1978, p. 63). Questão abordada por Jung (1981, p. 515), ao mencionar que “...são comuns também a todas as raças e épocas os principais motivos mitológicos”.
Dos múltiplos espaços guaratubanos, como ilhas, morros, igreja matriz, nasceram lendas que até hoje são reconfiguradas, o que nos levam a considerar que as narrativas lendárias surgem como premissas de um reencontro às origens e/ou raízes de um grupo. Quando essas origens não fazem parte dos arquivos históricos, uma alternativa de recuperação é a narração oral de lendas circulantes e de lendas relatadas pelos antecessores recuperadas pelas memórias. A partir dessas reflexões entende-se que nos bosques das lendas ou das narrativas orais há indícios culturais de modos de ver o mundo, de captar tempos vividos retidos na memória ou na história. Percebe-se que elas promovem o reencontro do ser associando-o ao coletivo, ao cultural do seu povo, já que, conforme Moraes e Carvalho (2010, p. 3), a tradição oral em relatar lendas e outras narrativas orais “...promove o reencontro com o tempo perdido. A memória está inscrita nos espaços, nos objetos, nas paisagens, nos odores, em múltiplos lugares e recuperá-la é associar-se ao coletivo e ao cultural”. Assim entendidas, as lendas tornam-se importantes fontes de informações para entender os grupos sociais, e até a nós mesmos, bem como as nuances da história de várias sociedades, pois há nelas representações, jogos de poder e memórias de formações de paisagens culturais.
Os primeiros levantamentos da pesquisa sinalizaram que as lendas demarcam dados culturais associados à fundação do município paranaense de Guaratuba em meados do século XVIII. Segundo, o historiador Mafra (1952), as narrativas de memórias guaratubanas recuperaram histórias sobre escravos lamuriosos, formação de morros, noivas fantasmas, tesouros enterrados, entre outras, que até hoje favorecem o surgimento de novas representações, nomeadas como “lendas urbanas”.
Há historicamente registros na literatura que a partir de releituras narrativas é possível compreender representações de poder social, visto que, as lendas recebem a cada releitura, novas ressignificações. Portanto as lendas são memórias de quem as viveu e retêm representações dos jogos de poder, podendo ser recuperadas coletivamente, diferentemente do que foram no passado. Nelas, memória e passado se entrecruzam, completam-se, e como sinaliza Ricoeur (op cit., p. 46) “...a memória é passado, independentemente do que possa significar a preteridade do passado”. Assim, através da memória, organizamos os encadeamentos dos fatos e das lendas que circulam em Guaratuba/PR e se apresentam como um viés à análise e compreensão não somente da memória, mas também das representações em jogos de poder que deste espaço social podem fazer parte, pois essas lendas não foram criadas no presente, mas sim em um passado e ciclicamente recuperam e fazem circular valores.
A partir daí, surgiu uma questão: os discursos orais presentificados por mulheres guaratubanas, recuperados em sessões de um Círculo de Leitura, entre os meses de janeiro a julho de 2015, reconfiguram as lendas de Guaratuba pela releitura e revelam representações dos jogos de poder. Discursos nascidos em outros tempos, descobertos e pronunciados por atores sociais do presente, tornam-se conforme Foucault (2008, p. 139) “... portadores das marcas que remetem à instância de sua enunciação e essas marcas, uma vez decifradas, podem liberar, por uma espécie de memória que atravessa o tempo, significações, pensamentos, desejos, fantasmas sepultados”, assim a releitura arranca o discurso da inércia do passado e recupera a vivacidade perdida.
O recorte e a análise da lenda da formação do Morro do Brejatuba indicam que as memórias, arrastam outras memórias já demarcadas por ideologias, inclusões e exclusões dessa e daquela cultura e preservam olhares sobre a paisagem. Portanto, narrativas recuperadas pela memória se inscrevem no presente e sofrem cortes, adaptações conforme o contexto vivido, tornando-se um viés para o estudo das representações e dos jogos de poder. Os narradores as recuperam da tradição ora para ensinar, ora para assustar, ora para provocar antigos medos, ou simplesmente para reaver saberes, fazeres, pensares e costumes sociais articulados em que os sujeitos envolvidos são confrontados com seus pressupostos, suas representações e memória em jogos de poder.
A LENDA DA FORMAÇÃO DO “MORRO DO BREJATUBA” ENQUANTO MEMÓRIA SOBRE A PAISAGEM
A proposta de estudar lendas como memórias e representações que estão veladas no seio de um grupo social, de uma comunidade que domina a oralidade partiram de um imperativo de testemunhar que algo aconteceu, por um viés que permite refletir de acordo com Alberti (2003, p. 24) sobre “... diferentes formas de articulação de atores e grupos, trazendo à luz a importância das ações dos indivíduos e de suas estratégias”, e através delas, abrir possibilidades de analisar as experiências que os atores sociais viveram ou vivenciam em seus grupos, narradas em cada encontro do Círculo de Leitura.
Lembrar e esquecer são movimentos da memória, assim sendo, o ato de esquecer e o de lembrar caminham próximos um do outro e ver uma coisa é não ver outra, contar uma narrativa ou esquecer outra, faz parte da memória e, portanto, o esquecimento tanto pode se tratar de um apagamento definitivo dos rastros do que foi apreendido anteriormente quanto de um impedimento provisório, este mesmo superável, oposto à sua reanimação.
Esquecemos porque, diante da sucessão dos acontecimentos e de classificações como memórias boas ou ruins, de regozijo ou aflição, como remédios ou venenos, o ato de guardá-las ou esquecê-las faz parte da rotina não somente dos atores sociais de um determinado grupo, até mesmo daqueles que governam as comunidades ou nações, que na ânsia de contar uma história acaba por deixar ou esquecer partes de outras histórias. Todavia o esquecimento, não deve ser tratado como disfunção e segundo Ricoeur (2007, p. 40), “... como o avesso de sombra da região iluminada da memória, que nos liga ao que se passou antes que o transformássemos em memória”.
Num dos encontros do Círculo de Leitura, o momento foi o de reviver as memórias da infância e dentre as memórias recuperadas emergiu a narrativa de um pescador caiçara sobre a formação do Morro do Brejatuba.
O termo “caiçara” se refere ao nativo do litoral paranaense, pescador nativo, ou representação de homem rústico, adjetivo lembrado por duas participantes do grupo como um indicativo de quem nasceu ou já estabeleceu raízes no lugar. A origem dos caiçaras remete aos primeiros habitantes de Guaratuba, os Carijós, povos indígenas que habitavam a região. Os povos indígenas são historicamente reconhecidos como os primeiros habitantes e os nomes de alguns morros, praias e rincões, além do nome do Município Guaratuba, indicam memórias sobre a presença deles. Todavia há poucos registros históricos, o historiador, Mafra (op cit., p. 65), por exemplo, descreve os indígenas como “...os habitantes nativos de Guaratuba e que por aqui séculos viveram” e, em outro momento, com o título de Os bugres em ação, menciona sobre uma invasão que eles fizeram a um sítio local:
Nômades, vagueavam por todos os lados, fugindo da perturbação que a ação civilizadora os fazia experimentar. (...) certa feita, foi o nosso município invadido por uma horda de selvagens aterrorizando os habitantes do sítio, que motivou uma representação assinada por 125 pessoas e datada de 1º de março de 1875, expondo à Câmara o assalto dos bugres no lugar (chamado) Pai-Paulo, deste município. (ibid., p. 297)
Mafra também relata que nos escritos de Saint Hilaire, registros de uma viagem realizada em 1820 na região litorânea do sul do Brasil, o viajante destaca, que a maior parte dos habitantes das terras brasileiras era mestiça de portugueses e de índias.
Os indígenas carijós, de descendência tupi-guarani, habitavam principalmente o sul do Brasil, daí possivelmente os brancos colonizadores de Guaratuba se uniram às mulheres dessa tribo e começaram a povoar a cidade. De acordo com Cabral, citado por Ávila (2010, p. 11), os carijós residiam em choças, viviam em tribos, e boa parte da alimentação advinha da agricultura produzida pelas mulheres. Segundo os relatos eram exímios arqueiros, pois na infância aprendiam como utilizar as armas, bem como a cantar e dançar nos rituais da tribo, preparar bebidas fermentadas e trançar cestos, esteiras, redes e pescar.
Outros registros da passagem dos indígenas Carijós nesta região partem das memórias de pescadores e, normalmente, referindo-se aos nomes dos principais morros, como Cabaraquara e Brejatuba, de praias (Caieiras, Brejatuba, Barra do Saí), rios ou ilhas, bem como a Ilha da Sepultura sobre a qual, se diz que era uma espécie de cemitério indígena. A lenda da formação do Morro do Brejatuba, cujo nome de origem indígena, Itacunhatã é associado à cultura desse povo nômade.
Itacunhatã faz parte da tradição indígena de narrar sobre criações rochosas. Em Guaratuba, essa tradição deu origem às lendas sobre o Morro do Cristo ou Morro Brejatuba, conforme figura 1.
Figura 1: Imagem do Morro do Cristo/Morro Brejatuba (Guaratuba/PR).
O termo indígena, Brejatuba, nomeia uma rocha que forma o conjunto do morro do Cristo, e conta à lenda que Itacunhatã, era um guerreiro famoso entre os indígenas Tinguis, que se perdeu de amores por Juracê, da família dos Carijós. Num passeio no alto do Brejatuba, Itacunhatã achou que havia conquistado Juracê. Ao envolvê-la em seus braços, Juracê esquivou-se, saiu correndo e caiu do alto do morro sendo engolida por uma enorme onda. Itacunhatã atirou-se para salvá-la, mas as ondas recuaram, ele foi de encontro às pedras e acabou morrendo. O mar, porém arrependeu-se e trouxe a jovem de volta para ser salva por Itacunhatã, que já não podia mais salvá-la. E assim o mar de modo contínuo, traz Juracê em suas ondas, para que um dia seja salva por Itacunhatã, conforme registros de Carneiro Jr. (op cit., p. 145).
Itacunhatã também aparece nos relatos orais de contadores de histórias guaratubanos quando explicitam a origem do nome – Itacunhatã - Tacunhatã (sem a pronúncia de i, letra inicial da palavra indígena). Contam que há muito tempo, quando nenhum homem branco tinha pisado nessas terras, vieram os índios Tinguis, que eram lá de cima (habitantes do planalto). Os Tinguis desceram a serra e vieram para o litoral para pescar tainhas e camarões e entre eles estava um bravo guerreiro, Tacunhatã. No litoral, esses indígenas decidiram visitar a tribo Carijó, grandes guerreiros. Foi, então, que Tacunhatã conheceu a índia Juracê, filha do chefe carijó. O guerreiro perdeu-se de bons sentimentos, mas a índia mostrou-se dissimulada. Entristecido com os encontros malogrados, o índio tingui buscou os conselhos de um dos velhos de sua tribo. O velho lhe falou que Juracê também lhe tinha bons e puros sentimentos, mas que estes eram iguais às ondas do mar que acariciam as rochas, isto é, fugazes. Ondas que vêm e se vão diante da rocha que tenta sempre envolvê-las; e que quando se pensa que o abraço acontecerá, as ondas retornam para o mar e, portanto deveria agarrá-la com toda a sua força de guerreiro. Como bom seguidor dos mais velhos, Tacunhatã resolveu convidar Juracê para passear. Os dois foram até o ponto mais alto do morro Brejatuba e após ardentes olhares se envolveram num abraço quase eterno. Porém, quando Tacunhatã ia beijá-la, selando o grande amor, Juracê deu um salto para trás, e desequilibrou-se e desceu até o mar, sucumbindo ao ser engolido por uma onda. Tacunhatã saltou em direção ao jovem na esperança de que pudesse salvá-lo, mas as ondas recuaram e o rapaz caiu nas pedras. O mar arrependeu-se e o devolveu a terra, onde ele, inflando de seus últimos suspiros de amor, elevou-se até quase o céu, transformando-se no morro Brejatuba, na esperança de que a jovem carijó, um dia, pudesse tocá-lo suavemente ao ser trazido pelas ondas do mar.
Relatos orais como esses nos permitem pensar que as lendas sobre os indígenas, enquanto representações e memórias dessa herança primeira dos brasileiros continuam vivas na atualidade, irrompendo recordações de um passado indígena em Guaratuba podem ser compreendidas como registros de paisagens culturais. Neste caso, essas lendas passam a ser os repositórios de informações culturais, a narrativa fixa a preservação do amor de um guerreiro que não mede esforços na conquista da amada. Ou, simplesmente registram segundo Cascudo (1984, p.129) “... amores tornados inesquecíveis, todos os elementos da lembrança coletiva, numa imensa, vaga e radiosa recordação do passado comum”, mediante as memórias, irrompendo em imagens dispersas e um corpo de imagens que tais representações nos fornecem de pessoas que se dizem caiçaras.
Os encontros do Círculo de leitura, assim como as experiências/vivências, propiciaram a recuperação de lendas sobre a origem dos espaços guaratubanos, bem como da formação de ilhas e morros, construção da igreja católica e de naufrágios de navios, o que nos levam a considerar que as narrativas lendárias surgem como premissas de um reencontro às origens e/ou raízes de um grupo. Portanto, quando essas origens não fazem parte dos arquivos históricos, uma alternativa para recuperá-las é a tradição das narrativas orais. A partir dessas reflexões pode haver espaço a uma questão: a de que nos bosques das lendas ou das narrativas orais há indícios culturais de modos de ver o mundo, de ver o presente antes vivido e que hoje já é memória ou até mesmo história. Percebe-se que elas promovem o reencontro do ser com o seu tempo perdido e o associa ao coletivo, ao cultural do seu povo. Assim entendidas, as lendas tornam-se significativas fontes de informações para entender os grupos sociais, e até a nós mesmos, e as nuances da história de várias sociedades, pois há nelas representações em jogos de poder e de memória.
A recuperação da memória do lendário mostra que ciclicamente as lendas traduzem uma preteridade coletiva vivida, inserindo a memória como um ser do passado, mas captada a partir do presente. Memórias que ignoram as explicações científicas e autorizam ao autor do presente o poder do narrar e de intervir no curso das coisas, atribuindo-lhe uma outra ação que não aquela de quando a lenda foi criada, o de ser o autor no tempo presente cuja noção vem constituir o momento de sua individualização, mas enquanto narrador com um discurso de ruptura estabelecido a partir da formação discursiva que teve em seu grupo social. Memória que revela que narrador e narrativa estão entrecruzados de outros discursos: discurso social, ideológico, e até do discurso do mito e das lendas de outros espaços.
As lendas guaratubanas recuperadas por vozes de mulheres são disseminadas ciclicamente e vêm sendo retomadas pela oralidade e por meio delas circulam valores e os modos dos atores sociais perceberem o mundo. Como os discursos pelos quais essas lendas são compostas de vozes que se entrecruzam e, ao mesmo tempo, discursos controlados, selecionados, organizados e redistribuídos por certos números de procedimentos que têm por função configurar poderes, conforme Foucault (2007), cada lenda pode adquirir novas representações quando reconfiguradas no presente, apropriando-se de elementos tanto do mito quanto da tradição, conservando entrecruzados na sua variedade lendária caracteres míticos e também lendários. Enquanto representações, que partem da linguagem presente em um discurso, do modo de produção e de dizer o discurso que se concretizam na vivência do grupo através de valores, ideologias, considerou-se que elas são formadas por feixes de relações, enunciados dispersivos que, nascendo de fatos históricos ou simplesmente do imaginário que os atores sociais fazem da realidade vivida por eles ou por seus ancestrais, bem como as histórias em que o sobrenatural. E tais representações efetivam-se porque ansiamos por explicações, porque carecemos de atos de heroísmos, porque a ciência está longe de explicar a constituição das representações vindas do imaginário social ou, simplesmente, porque a ciência exclui o próprio imaginário, o fantástico, aquilo que surpreende os narradores dos grupos sociais ao recuperarem narrativas orais assume-se como “os troianos” que lutam contra aqueles atravancam possibilidades de manterem-se como narradores da própria “Odisseia e Ilíada” atualizando-as como novos odisseus.
Ainda no que se referem às representações, as lendas desvelam marcas enunciativas de jogos de poder como uma força micro que os atores sociais ou o grupo social demonstra certas atitudes e valores. O poder, nesse caso, surge como uma relação de força estabelecida em determinados momentos historicamente vivenciados que determinam e que pode constituir o espaço habitado e como o grupo em si, os atores, e até mesmo a natureza, os instintos, as ideologias, se tornaram dentro daquele contexto social e do tempo vivido. Poder esse que serve como instrumento para dizer algo, como ser caiçara. Poder que surge a partir do ordenamento social em que são criadas essas representações, e pelo qual cada grupo social deixa exposto seu modo particular de entender ou explicar as coisas, aceitando essa ou aquela realidade e as transformações sociais no espaço onde ele está inserido e, por estarem em constante movimentação, às representações surgidas podem ser mais fortes para um grupo que para outro, mostrando ora esse ora aquele comportamento, ato de pensar e, até mesmo, como as coisas, os acontecimentos, os objetos são assim transformados pelos atores sociais.
Também ressaltamos que o poder pode ser visto como uma instância discursiva que serve para impor luta e submissão, verdades, inclusões e exclusões. Ao mesmo tempo, que o poder cria e permite certas representações, também seleciona, inclui e exclui, escolhendo outras representações cuja circulação faz com que os efeitos dessas escolhas sejam transmitidos, por canais cada vez mais sutis, até aos/ e pelos próprios atores sociais, seja essa transmissão pelo discurso proferido pelos mesmos e até por seus corpos, seus gestos, cada um dos seus desempenhos cotidianos e segundo Foucault (2008), reafirmam discursos já existentes ou produzem outros que são entrecruzados por vozes e adesões e que aprovam o rol daquilo que se conhece ou não, daquilo que se deve ter como premissa do grupo ou que se deve ser rechaçado por ele a partir dos jogos de poder e dos modos de como eles são apropriados pelos narradores das lendas no tempo presente, afinal, esses narradores e os seus ouvintes são portadores das marcas que remetem à instância da enunciação das lendas e essas marcas, uma vez decifradas, podem liberar, por uma espécie de memória que atravessa gerações e o tempo, oferecendo novas significações, pensamentos, desejos, e até mesmo revivendo os fantasmas sepultados. Essas representações partem do discurso, estão agregadas na formação discursiva e na vivência do grupo no qual circulam, deixando rastros de valores, ideologias, maneiras de esse mesmo grupo aprovar o que é melhor para ele. Diante disso, as lendas são compreendidas como repositórios de informações, que abrangem costumes, leis e propriedades sociais e outros valores agregados pelos grupos sociais nos quais elas circulam e são recuperadas, mesmo que fragmentadas, com cortes ou acréscimos, sofrendo as incursões do tempo, do espaço e do contexto em que estão envolvidos esses mesmos grupos e os seus atores sociais.
As memórias guaratubanas, irrompem em imagens dispersas e um corpo de imagens, em sua dispersão revela discursivamente as tradições vivenciadas no quotidiano desse espaço de acordo com o contexto em que são vividas. Representações e memórias disseminadas em jogos de poder indicam um encantamento do passado, e no estranhamento desse mesmo passado, seja através de problematizações, indagações ou conformações, também indicam caminhos para compreender o imaginário popular circulante nas lendas guaratubanas. As lendas são rastros, indicações, singularidades cuja memória disponibiliza no presente e serve como sentido de orientação da passagem da história dos grupos sociais. E como são também testemunhos fragmentados que formam as narrativas orais de uma experiência de vida única enquanto rastros de memória, devem ser vistas como documentos culturais preciosos das narrativas orais que os grupos sociais criam e recriam, contam e recontam mediante suas necessidades e contexto em que estão inseridos.
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NOTAS
1Doutora em Letras Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, professora da Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE/SC – Curso de Letras e Programa de Mestrado Patrimônio Cultural e Sociedade, Líder do Grupo de Pesquisa Imbricamentos de Linguagens – CAPES/CNPq.
2Mestre pelo Programa de Mestrado de Patrimônio Cultural e Sociedade - UNIVILLE e pesquisador do Grupo de Pesquisa Imbricamentos de Linguagens – CAPES/CNPq (in memoriam).
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